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Esse Blog é mais um meio para dialogarmos sobre leituras diversas.

30 setembro, 2011

Poemas Fernando Pessoa (Pseudônimos) (6)

Eu agi sempre

Eu agi sempre, Eu agi sempre para dentro, 
eu nunca toquei na vida. 
Nunca soube como se amava, 
Apenas soube como se sonhava amar. 
Se eu gostava de usar anéis de dama nos meus dedos, 
é que às vezes eu queria julgar 
que as minhas mãos eram de princesa. 
Gostava de ver a minha face refletida, 
porque podia sonhar que era a face de outra criatura . 
(Bernardo Soares)



Dever de Sonhar

Eu tenho uma espécie de dever,
dever de sonhar,
de sonhar sempre,
pois sendo mais do que um espetáculo de mim mesmo,
eu tenho que ter o melhor espetáculo que posso.
E, assim, me construo a ouro e sedas, em salas
supostas, invento palco, cenário para viver o meu sonho
entre luzes brandas e músicas invisíveis.
(Fernando Pessoa)



Todas as Cartas de Amor são Ridículas

Todas as cartas de amor são
       Ridículas.
       Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.
Também escrevi em meu tempo cartas de amor, 
       Como as outras,
       Ridículas.
As cartas de amor, se há amor, 
       Têm de ser
       Ridículas.
Mas, afinal,
       Só as criaturas que nunca escreveram 
       Cartas de amor 
       É que são
       Ridículas.
Quem me dera no tempo em que escrevia 
       Sem dar por isso
       Cartas de amor
       Ridículas.
A verdade é que hoje 
       As minhas memórias 
       Dessas cartas de amor 
       É que são
       Ridículas.
(Todas as palavras esdrúxulas, como os sentimentos esdrúxulos,
       São naturalmente Ridículas.)
(Álvaro de Campos)

  

Aniversário 

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
(Álvaro de Campos)



Autopsicografia

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
 (Fernando Pessoa)



Para ser grande, sê inteiro

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.
(Fernando Pessoa)




28 setembro, 2011

Fernando Pessoa

As faces de um célebre

Fernando Antônio Nogueira Pessoa foi um dos mais importantes escritores e poetas do modernismo em Portugal. Nasceu em 13 de junho de 1888 na cidade de Lisboa (Portugal) e morreu, na mesma cidade, em 30 de novembro de 1935. 


Um pouco sobre ele
Uma vida e muitas invenções
Ao escrever sobre Fernando Pessoa, o poeta mexicano Octavio Paz declara que “os poetas não têm biografia. Sua obra é sua biografia”. Afirma ainda, que, no caso de Pessoa, “nada em sua vida é surpreendente -- nada, exceto seus poemas.”  Homem de vida pública modesta, Fernando Pessoa dedicou-se a inventar. Através da poesia, criou outras vidas, despertando, assim, o interesse por sua própria vida tão pacata. Tornou-se, portanto, o enigma em pessoa.
  
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Nascido em Lisboa, no dia 13 de junho de 1888, Fernando Pessoa perdeu o pai aos cinco anos de idade. Em 1896, a família se transfere, levada pelo segundo marido de sua mãe, para a cidade de Durban, na África do Sul. Lá, cursa o secundário, cedo revelando seu pendor para a literatura. Em 1903, ingressa na Universidade do Cabo.
Fernando Pessoa, educado em inglês, adquiriu o gosto pela poesia lendo Milton, Byron, Shelley, Edgar Allan Poe e outros poetas de língua inglesa. Deixando a família em Durban, o jovem estudante, que até pensava em inglês, retorna a Portugal. Fernando Pessoa matricula-se, então, no Curso Superior de Letras, que logo abandona, e entra em contato com os grandes escritores da língua portuguesa. Impressiona-se sobremaneira com os sermões do Padre Antônio Vieira (1608-1697) e particularmente com a obra de Cesário Verde (1855-1886), Em 1908 começa a trabalhar como tradutor de cartas comerciais para empresas estrangeiras. Fernando Pessoa nunca teve, em vida, o reconhecimento que merecia. Viveu modestamente, em relativa obscuridade. Em vida, teve apenas dois livros publicados: alguns poemas em inglês e Mensagem.
 

Os heterônimos

 Desde cedo, Fernando Pessoa inventara seus companheiros. Mas seria no dia  8 de março de 1914 que os heterônimos começariam a aparecer com toda a força. Neste dia, Pessoa escreve, de uma só vez, os 49 poemas de O Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro. Como resposta, escreve também os seis poemas de Chuva Oblíqua,  que assina com seu próprio nome. Logo, inventaria Álvaro de Campos e, em junho do mesmo ano, Ricardo Reis. Um semi-heterônimo de Pessoa, Bernardo Soares, só em 1982 teve sua obra, O Livro do Desassossego, composta por fragmentos de prosa poética, publicada.
 Álvaro de Campos e Ricardo Reis, assim como o próprio Pessoa, consideravam-se discípulos de Alberto Caeiro, mas cada um seguiu os ensinamentos do mestre à sua forma, e chegaram até a travar uma polêmica muito interessante sobre o fazer poético.
  A última frase de Fernando Pessoa foi escrita em inglês no dia de sua morte:
“I know not what tomorrow will bring” ou “Eu não sei o que o amanhã trará”
O amanhã trouxe para Fernando Pessoa uma admiração crescente. Suas obras foram aos poucos sendo publicadas e ele é considerado hoje, ao lado de Camões, um dos dois maiores poetas portugueses de todos os tempos. Nenhum poeta, em língua portuguesa, obteve tanto prestígio em todo o mundo. O obscuro e modesto lisboeta tornou-se, assim, um nome importante em todo o mundo. Graças ao poder da palavra. Graças à magia da poesia.
 


Pessoa e os heterônimos
 
Mais do que meros pseudônimos, outros nomes com os quais um autor assina sua obra, os heterônimos são invenções de personagens completos, que têm uma biografia própria, estilos literários diferenciados, e que produzem uma obra paralela à do seu criador. Fernando Pessoa criou várias dessas personagens.
Fernando Pessoa viveu durante os primórdios do Modernismo, uma época em que a arte se fragmentava em várias tendências simultâneas, as chamadas Vanguardas: Futurismo, Cubismo, Expressionismo, Dadaísmo, Surrealismo e muitas outras. A arte, no momento da explosão das inúmeras vanguardas modernistas por todo
o mundo, também se dividia e se multiplicava. Fernando Pessoa, introdutor das vanguardas modernistas em Portugal, ao se dividir, levou a fragmentação da arte moderna às últimas consequências.
Alberto Caeiro (1889 - 1915)
Fernando Pessoa explicou em detalhes a “vida”de cada um de seus heterônimos. Assim apresenta a vida do mestre de todos, Alberto Caeiro: 'Nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão, nem educação quase alguma, só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia avó. Morreu tuberculoso. Pessoa cria uma biografia para Caeiro que se encaixa com perfeição à sua poesia, como podemos observar nos 49 poemas da série O Guardador de Rebanhos, incluída por inteiro nesta antologia. Segundo Pessoa, foram escritos na noite de 8 de março de 1914, de um só fôlego, sem interrupções. Caeiro escreve com a linguagem simples e o vocabulário limitado de um poeta camponês pouco ilustrado. Pratica o realismo sensorial, numa atitude de rejeição às elucubrações da poesia simbolista. Caeiro coloca-se, portanto, como inimigo do misticismo, que pretende ver “mistérios” por trás de todas as coisas. Busca precisamente o contrário: ver as coisas como elas são, sem refletir sobre elas e sem atribuir a elas significados ou sentimentos humanos.
 
Ricardo Reis (1887 - 1935?)
Se Alberto Caeiro era um camponês autodidata desprovido de erudição, seu discípulo Ricardo Reis era um erudito que insistia na defesa dos valores tradicionais, tanto na literatura quanto na política. De acordo com Pessoa: "Ricardo Reis nasceu no Porto. Educado em colégio de jesuítas, é médico e vive no Brasil desde 1919, pois expatriou-se espontaneamente por ser monárquico. É latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria." Discípulo de Caeiro, Reis retoma o fascínio do mestre pela natureza pelo viés do neoclassicismo. Insiste nos clichês árcades do Locus Amoenus (local ameno) e do Carpe Diem (aproveitar o momento). A linguagem de Ricardo Reis é clássica. Usa um vocabulário erudito e, muito apropriadamente, seus poemas são metrificados e apresentam uma sintaxe rebuscada. Os poemas de Reis são odes, poemas líricos de tom alegre e entusiástico, cantados pelos gregos, ao som de cítaras ou flautas, em estrofes regulares e variáveis.

Álvaro de Campos (1890 - 1935?)
Fernando Pessoa nos informa que Álvaro de Campos: “Nasceu em Tavira, teve uma educação vulgar de Liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Agora está aqui em Lisboa em inatividade." Como normalmente acontece com os poetas de carne e osso, o heterônimo Álvaro de Campos apresenta três fases distintas em sua poesia. De início é influenciado pelo decadentismo simbolista, depois pelo futurismo e por fim, amargurado, escreve poemas pessimistas e desiludidos. Os poemas de Álvaro de Campos são marcados pela oralidade e pela prolixidade que se espalha em versos longos, próximos da prosa. Despreza a rima ou métrica regular. Despeja seus versos em torrentes de incontrolável desabafo.
       


Fernando Pessoa, ele mesmo
 
A obra que Fernando Pessoa assinou com seu próprio nome está reunida nos volumes Cancioneiro e Mensagem. O Cancioneiro é composto por poemas líricos, rimados e metrificados, de forte influência simbolista. O leitor atento há de perceber que o poeta parte de uma dor sua, real, integral. Só quem sente uma dor pode fingir outra que não sente. Só quem tem personalidade pode ser ator. Como Fernando Pessoa. Já os leitores, lêem no poema a dor ou o sentimento que lhes falta e que gostariam de ter. Sentem-na ao atribuí-la a poeta.

Por Frederico Barbosa
Site: http://fredb.sites.uol.com.br/pessoa.html
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22 setembro, 2011

* Cordel Encantado *


Desde que a rede globo exibiu o primeiro capítulo da novelas das  das 6hs, “Cordel Encantado” (que iniciou no dia 11 de abril)  tenho " quando posso" acompanhado essa mistura excepcional de culturas que liga o interior do nordeste aos moldes Europeus unindo o mais alto padrão da linguagem culta ao modelo coloquial e “matuto”, um repertório de popularidade e versatilidade que serve de pretexto para unir dois mundos numa dualidade de cenas que conta a história fictícia de um Reino chamado Seráfia e uma cidadezinha do Interior de Nordestino, presume-se que seja no interior de Recife, pois nas falas os personagens dizem: " - Vou à Capital Recife”!
Entre Reis, Duques, Duquesa, Marqueses, há também o fator Coronelismo muito visto na época exercido pelo por alguém que detinha o poder local.
Diante de tantos apetrechos, a novela trás consigo a figura do cangaço que tanto foi difundido aqui no Nordeste nos meados do século XIX.
O cangaço tem suas origens em questões sociais e fundiárias caracterizando-se por ações violentas de grupos ou indivíduos isolados: assaltavam fazendas, sequestravam coronéis (grandes fazendeiros) e saqueavam comboios e armazéns. Não tinham moradia fixa: viviam perambulando pelo sertão brasileiro, praticando tais crimes, fugindo e se escondendo.
Porem, Duca Rachid e Thelma Guedes as escritoras da trama, busca na figura do Rei do Canganço um homem mais justiceiro, vivido pelo ator Domingos Montagner.
As ilustrações dessa estória, trás uma musicalidade também bem peculiar voltada para a nossa região, como é o caso de:


"Maracatu atômico", de Chico Science & Nação Zumbi
"Chão de giz", de Zé Ramalho
"Na primeira manhã", de Alceu Valença
"Carcará", de Otto
"Rei José", de Silvério Pessoa
"Xamêgo", de Luiz Gonzaga

Sendo assim, Cordel Encantado nasce de um investimento pesado da TV Globo. Foi a primeira novela do Brasil gravada com imagens em 24 quadros, o que lembra muito filmes e séries norte americanas. Sem contar na história que por si só já chama atenção pelo capricho das cenas, figurino, caracterização dos atores, além de um roteiro bastante seguro e com personagens bem construídos.
Uma das cenas que não podem ser esquecidas é o diálogo entre Herculano e Belarmino (Bel), onde na ocasião Herculano diz que Bel chegou no acampamento ainda menina depois que um Coronel matou toda sua família na Paraíba.
Amanhã essa trama tão nossa, exibirá seu ultimo capítulo demarcando uma sucessiva premiação no IBOP, a final de contas o Nordeste é mesmo um pedaço encantador desse nosso trigueiro Brasil.

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17 setembro, 2011

Pedagogia da Autonomia ( Paulo Freire)


Cap. 1 – Não há docência sem discência 
1.1 – Ensinar exige rigorosidade metódica 
1.2 – Ensinar exige pesquisa 
1.3 – Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos 
1.4 – Ensinar exige criticidade   
1.5 – Ensinar exige estética e ética 
1.6 – Ensinar exige corporeificação das palavras pelo exemplo
1.7 – Ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a discriminação 
1.8 – Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática   
1.9 – Ensinar exige o reconhecimento e a assunção da identidade cultural 
 
Não há docência sem discência 

Devo deixar claro que, embora seja meu interesse central considerar neste texto saberes que me parecem indispensáveis à prática docente de educadoras ou educadores críticos, progressistas, alguns deles são igualmente necessários a educadores conservadores. São saberes demandados pela prática educativa  em si mesma, qualquer que seja a opção política do educador ou educadora.

Na continuidade da leitura vai cabendo ao leitor ou leitora o exercício de perceber se este ou aquele saber referido corresponde  à natureza da prática progressista ou conservadora ou se, pelo contrário, é  exigência da prática educativa mesma independentemente de sua cor política ou  ideológica. Por outro lado, devo sublinhar que, de forma não-sistemática, tenho me referido a alguns desses saberes em trabalhos anteriores. Estou convencido, porém, é legítimo acrescentar, da importância de uma reflexão como esta quando penso a formação docente e a prática educativo-crítica.

O ato de cozinhar, por exemplo, supõe alguns saberes concernentes ao uso do fogão, como acendê-lo, como equilibra par mais, para menos, a chama, como lidar com certos riscos mesmo remotos de incêndio, como harmonizar os diferentes temperos numa síntese gostosa e atraente. A prática de  cozinhar vai preparando o novato, ratificando alguns daqueles saberes, retificando outros, e vai possibilitando que ele vire cozinheiro. A prática de velejar coloca a necessidade de saberes fundantes como o do domínio do barco, das partes que compõem e da função de cada uma delas, como o conhecimento dos ventos, de sua força, de  sua direção, os ventos e as velas, a posição das velas, o papel do motor e da combinação entre motor e velas. Na prática de velejar se confirmam, se modificam ou se ampliam esses saberes.

A reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência da relação Teoria/Prática sem a qual a teoria pode ir virando blábláblá e a prática, ativismo.

O que me interessa agora, repito, é alinhar e discutir alguns saberes fundamentais à prática educativo-crítica ou progressista e  que, por isso mesmo, devem ser conteúdos obrigatórios à organização programática  da formação docente. Conteúdos cuja compreensão, tão clara e tão lúcida quanto possível, deve ser elaborada na prática formadora. É preciso, sobretudo, e aí já vai  um destes saberes indispensáveis, que o formando, desde o principio mesmo de sua experiência formadora, assumindo-se com sujeito também da produção do saber, se convença definitivamente de que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção.

Se, na experiência de minha formação, que  deve ser permanente, começo por aceitar que o formador é o sujeito em relação a quem me considero o objeto por ele formado, me considero como um paciente que recebe os conhecimentos-conteúdos-acumulados pelo sujeito que sabe e a são a mim transferidos. Nesta forma de compreender e de viver o processo formador, eu, objeto agora, terei a possibilidade, amanhã, de me tornar o falso sujeito da "formação" do futuro objeto de meu ato formador. É preciso que, pelo contrário, desde os começos do processo, vá ficando cada vez mais claro que, embora diferentes entre si, quem forma se forma e re-forma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado. É neste sentido que ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos nem formar é ação pela qual um sujeito criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado. Não há docência  sem discência, as  duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que  os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina aprende  ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. Quem ensina, ensina alguma coisa a alguém. Por isso é que, do ponto de vista gramatical, o verbo ensinar é um verbo transitivo-relativo. Verbo que pede um objeto direto - alguma coisa - e um objeto indireto - a alguém. Do ponto de vista democrático em que me situo, mas também do ponto de vista da radicalidade metafísica em que me coloco e de que decorre minha compreensão do homem e da mulher como seres históricos e inacabados e sobre que se funda a minha inteligência do processo de conhecer, ensinar é algo mais que um verbo transitivo-relativo. Ensinar inexiste sem aprender e vice-versa e foi aprendendo socialmente que, historicamente, mulheres e homens descobriram que era possível ensinar. Foi assim, socialmente aprendendo, que ao longo dos tempos mulheres e homens perceberam que era possível - depois, preciso - trabalhar maneiras, caminhos, métodos de ensinar. Aprender precedeu ensinar ou, em outras palavras, ensinar se diluía na experiência realmente fundante de aprender. Não temo dizer que inexiste validade do ensino de que não resulta um aprendizado em que o aprendiz não se tornou capaz de recriar ou de refazer o ensinado, em que o ensinado que não foi apreendido não pode realmente aprendido pelo aprendiz.

Quando vivemos a autenticidade exigida pela prática de ensinar-aprender participamos de uma experiência total,  diretiva, política, ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética e ética, em que a boniteza deve achar-se de mãos dadas com a decência e com a serenidade.

Às vezes, nos meus silêncios em que aparentemente me perco, desligado, flutuando quase, penso na importância singular que vem sendo para mulheres e homens sermos ou nos ternos tornado, como constata François Jacob, "seres programados, mas, para aprender". É que o preciso de aprender, em que historicamente descobrimos que era possível ensinar como tarefa não apenas embutida no aprender, é um processo que pode deflagrar no aprendiz uma curiosidade crescente, que pode torná-lo mais e mais criador.
O que quero dizer é o seguinte: quanto mais criticamente se exerça a capacidade de aprender tanto mais se constrói e se desenvolve o que venho chamando "curiosidade epistemológica", sem a qual não alcançamos o conhecimento cabal do objeto.

É isto que nos leva, de um lado, à crítica e à recusa ao ensino "bancário", de outro, a compreender que, apesar dele, o educando a ele submetido não está fadado a fenecer, em que pese o ensino "bancário", que deforma a necessária criatividade do educando e do educador, o educando a ele sujeitado  pode, não por causa do conteúdo cujo "conhecimento" lhe foi transferido, mas por causa do processo mesmo de aprender, dar, como se diz na linguagem popular, a volta por cima e superar o autoritarismo e o erro epistemológico do "bancarismo".

O necessário é que, subordinado, embora à prática "bancária", o educando mantenha vivo em si o gosto da rebeldia que, aguçando sua curiosidade e estimulando sua capacidade de arriscar-se, de aventurar-se, de certa forma o "imuniza" contra o poder apassivador do "bancarismo". Neste caso, é a força criadora do aprender de que fazem parte a comparação, a repetição, a constatação, a dúvida rebelde, a curiosidade não facilmente satisfeita, que supera os efeitos negativos do falso ensinar. Essa é uma das significativas vantagens dos seres humanos - a de se terem  tornado capazes de ir mais
além de seus condicionantes. Isto não significa, porém, que nos seja indiferente ser um educador "bancário" ou um educador "problematizador".


1.1 - Ensinar exige rigorosidade metódica

O educador democrático não pode negar-se o dever de, na sua prática docente, reforçar a capacidade crítica do educando, sua curiosidade, sua submissão. Uma de suas tarefas primordiais é trabalhar com os educandos a  rigorosidade metódica com que devem se "aproximar" dos abjetos cognoscíveis. E esta rigorosidade metódica não tem nada que ver com o discurso "bancário" meramente  transferido do perfil do abjeto ou do conteúdo. É exatamente neste sentido que  ensinar não se esgota no "tratamento" do objeto ou do conteúdo, superficialmente feito, mas se alonga à produção das condições em que aprender criticamente é possível.  E essas condições implicam ou exigem a presença de educadores e de educandos criadores, instigadores, inquietos, rigorosamente curiosos, humildes e persistentes. Faz parte das condições em que aprender criticamente é possível e pressuposição por parte dos educandos de que o educador já teve ou continua tendo experiência da produção de certos saberes e que estes não podem a eles, os educandos, ser simplesmente transferidos. Pelo contrário, nas condições de verdadeira aprendizagem os educandos vão  se transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução do saber ensinando, ao lado do educador, igualmente sujeito do processo. Só assim podemos falar realmente de saber ensinando, em que o objeto ensinado é apreendido na sua razão de ser e, portanto, aprendido pelos educandos.

Percebe-se, assim, a importância do papel do educador, o mérito da paz com que viva a certeza de que faz parte de sua tarefa docente não apenas ensinar os conteúdos mas também ensinar a pensar certo. Aí a impossibilidade de vir a tornar-se um professor crítico se, mecanicamente memorizador, é  muito mais um repetidor cadenciado de frases e de idéias inertes do que um desafiador. O intelectual memorizador, que lê horas a fio, domesticando-se ao texto, temeroso de  arriscar-se, fala de suas leituras quase como se estivesse recitando-as de memória - não percebe, quando realmente existe, nenhuma relação entre o que leu e o que vem ocorrendo no país, na sua cidade, no seu bairro. Repete o lido com precisão mas raramente ensaia algo pessoal. Fala bonito de dialética mas pensa mecanicistamente. Pensa errado. É como se os livros todos a cuja leitura dedica tempo parto nada devessem ter com realidade de seu mundo. A realidade com que eles têm que ver é a realidade idealizada de uma escola que vai virando cada vez mais um lado aí, desconectado do concreto.
Não se lê criticamente como se fazê-lo fosse a mesma coisa que comprar mercadoria por atacado. Ler vinte livros,  trinta livros. A leitura  verdadeira me compromete de imediato com o texto que a mim se dá e a que me dou e cuja compreensão fundamental me vou tornando também sujeito. Ao ler não me acho no puro encalço da inteligência do texto como se fosse ela produção apenas de seu autor ou de sua autora. Esta forma viciada de ler não tem nada de ver, por isso mesmo, com o pensar certo e com o ensinar certo.

 Só, na verdade, quem pensa certo, mesmo  que, às vezes, pensa errado, é quem pode ensinar a pensar certo. E uma das condições necessárias a pensar certo é não estarmos demasiado certos de nossas certezas. Por isso é que o pensar certo, ao lado sempre da pureza e necessariamente distante do puritanismo, rigorosamente ético e gerador de boniteza, que me parece inconciliável com a desvergonha da arrogância de quem se acha cheia ou cheio de si mesmo.

O professor que pensar certo deixa transparecer aos educandos que uma das bonitezas de nossa maneira de estar no mundo e com o mundo , como seres históricos, é a capacidade de, intervindo no mundo, conhecer o mundo. Mas, histórico como nós, o nosso conhecimento do mundo tem historicidade. Ao ser produzido, o conhecimento novo supera outro antes que foi novo e se fez velho e se "dispõe" a ser ultrapassado por outro amanhã. Daí que seja tão fundamental conhecer o conhecimento existente quanto saber que estamos abertos e aptos à produção do conhecimento ainda não existente. Ensinar, aprender e pesquisar lidam com esses dois momentos do ciclo gnosiológico: o em que se ensina e se aprende o conhecimento já existente e o em que se trabalha a produção do conhecimento ainda não existente. A "dodiscência" - docência-discência - e a pesquisa, indicotomizáveis, são assim práticas requeridas por estes momentos do ciclo gnosiológico. 

1.2 - Ensinar exige pesquisa

Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que-fazeres se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo, educo e me educo. Pesquiso para conhecer e o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade.

Pensar certo, em termos críticos, é uma  exigência que os momentos do ciclo gnosiológico vão pondo à curiosidade que, tornando-se mais e mais metodicamente rigorosa, transita da ingenuidade para o que venho chamando "curiosidade epistemológica". A curiosidade ingênua, de  que resulta indiscutivelmente um certo saber, não importa que metodicamente desrigoroso, é a que caracteriza o senso comum. O saber de pura experiência feito. Pensar  certo, do ponto de vista do professor, tanto implica o respeito ao senso comum no processo de sua necessária superação quanto o respeito e o estímulo à capacidade criadora do educando. Implica o compromisso da educadora com a consciência crítica do educando cuja "promoção" da ingenuidade não se faz automaticamente.


1.3 - Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos

Por isso mesmo pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, à escola, o dever de não só respeitar os saberes com que os educandos, sobretudo os da classes populares, chegam a ela - saberes socialmente construídos na prática comunitária - mas também, como há mais de trinta anos venho sugerindo, discutir com os alunos a razão de ser de alguns desses saberes em relação com o ensino dos conteúdos. Porque não aproveitar a experiência que tem os alunos de viver em  áreas da cidade descuidadas pelo poder público para discutir, por exemplo, a poluição dos riachos e dos córregos e os baixos níveis de bem estar das populações, os lixões e os riscos que oferecem à saúde das gentes. Porque não há lixões no coração dos bairros rios e mesmo puramente remediados dos centros urbanos? Esta pergunta é considerada em si demagógica ereveladora da má vontade de quem a faz.  É pergunta de subversivo, dizem certos defensores da democracia.

Porque não discutir com os alunos a realidade concreta a que se deva associar a disciplina cujo conteúdo se ensina, a realidade agressiva em que a violência é a constante e a convivência das pessoas é muito maior com a morte do que com a vida? Porque não estabelecer uma necessária "intimidade" entre os saberes curriculares fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm como indivíduos? Porque não discutir as implicações políticas e ideológicas de um tal descaso dos dominantes elas áreas pobres da cidade? A ética de classe embutida neste descaso? Porque, dirá um educador reacionariamente pragmático, a escola não tem nada que ver com isso. A escola não é partido. Ela tem que ensinar  os conteúdos, transferi-los aos alunos. Aprendidos, estes operam por si mesmos. 



A curiosidade como inquietação indagadora, como inclinação ao desvelamento de algo, como pergunta verbalizada ou não, como  procura de esclarecimento, como sinal de atenção que sugere e alerta faz parte integrante do fenômeno vital. Não haveria criatividade sem a curiosidade que nos move e que nos põe  pacientemente impacientes diante do mundo que não fizemos, acrescentando a ele algo que fazemos.

Como manifestação presente a experiência vital, a curiosidade humana vem sendo histórica e socialmente construída e reconstruída. Precisamente por que a promoção da ingenuidade para a criticidade não se dá automaticamente, uma das tarefas precípuas da prática educativa-progressista  é exatamente o desenvolvimento da curiosidade crítica, insatisfeita, indócil. Curiosidade com que podemos nos defender "irracionalismos" decorrentes do ou produzidos por certo excesso de "racionalidade" de nosso tempo altamente tecnologizado. E não vai nesta consideração nenhuma arrancada falsamente humanista de negação da tecnologia e da ciência. Pelo contrario é consideração de quem, de um lado, não diviniza a tecnologia, mas, de outro, não há diaboliza. De quem a olha ou mesmo a espreita de forma criticamente curiosa.




1.4 - Ensinar exige criticidade

Não há para mim, na diferença e na "distancia" entre a ingenuidade e a criticidade, entre o saber de pura experiência feito e o que  resulta dos procedimentos metodicamente rigorosos, uma ruptura, mas uma superação.  A superação e não a ruptura se dá na medida em que a curiosidade ingênua, sem deixar de ser curiosidade, pelo contrário, continuando a ser curiosidade, se criticiza. Ao criticizar-se, tornando-se então, permito-me repetir, curiosidade epistemológica, metodicamente "rigorizando-se" na sua aproximação ao objeto, conota-se seus achados de maior exatidão.
Na verdade, a curiosidade ingênua que, "desarmada", esta associada ao saber do senso comum, é a mesma curiosidade que, criticizando-se, aproximando-se de forma cada vez mais metodicamente rigorosa do objeto cognoscível, se torna curiosidade epistemológica. Muda de qualidade mas não de essência. A curiosidade de camponeses com quem tenho dialogado ao longo de minha experiência político-pedagógica, fatalistas ou já rebeldes diante da violência das injustiças, é a mesma curiosidade, enquanto abertura mais ou menos espantada diante de "não-eus", com que cientistas ou filósofos acadêmicos, "admiram" o mundo. Os cientistas e filósofos superam, porém, a ingenuidade da curiosidade do camponês e se tornam epistemologicamente curiosos.



1.5 - Ensinar exige estética e ética

A necessária promoção da ingenuidade a criticidade não pode ou não deve ser feita a distância de uma rigorosa formação ética  ao lado sempre da estética. Decência e boniteza de mãos dadas. Cada vez me convenço mais de que, desperta com relação à possibilidade de enveredar-se no descaminho do puritanismo, a prática educativa tem de ser, em si, um testemunho rigoroso de decência e de pureza. Uma crítica permanente aos desvios fáceis com que somos tentados, as vezes ou quase sempre, a deixar dificuldades que os caminhos verdadeiros podem nos colocar. Mulheres e homens, seres histórico-sociais, nos tornamos capazes de comparar, de valorar, de intervir, de escolher, de decidir, de romper, por tudo isso, nos fizemos seres éticos. Só somos porque estamos sendo. Estar sendo é a condição, entre nós, para ser. Não é possível pensar os seres humanos longe, sequer, da ética, quanto mais fora dela. Estar longe ou pior, fora da ética, entre nós, mulheres e homens, é uma  transgressão. É por isso que transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu caráter formador. Se se respeita a natureza do ser humano, o ensino  dos conteúdos não pode dar-se alheio à formação moral do educando. Educar é substantivamente formar. Divinizar ou diabolizar a tecnologia ou a ciência é uma forma altamente negativa e perigosa de pensar errado. De testemunhar os alunos, as vezes com ares de quem possui a verdade, um rotundo desacerto. Pensar certo, pelo contrario, demanda profundidade e não superficialidade na compreensão e na interpretação dos fatos. Supõe a disponibilidade à revisão dos achados, reconhece não apenas  a possibilidade de mudar de opção, de apreciação, mas o direito de fazê-lo. Mas como não há pensar certo à margem de princípios éticos, se mudar é uma possibilidade e um direito, cabe a quem muda - exige o pensar certo - que assuma a mudança operada. Do ponto de vista do pensador, não é possível mudar e fazer de conta que não mudou. É que todo pensar certo é radicalmente coerente.


1.6 - Ensinar exige a corporeificação das palavras pelo exemplo

O professor que realmente ensinar, quer dizer, que trabalha os conteúdos no quadro da rigorosidade do pensar certo, nega, como falsa, a fórmula farisaica do "faca o que mando e não o que eu faço". Quem pensa certo está cansado de saber que as palavras a que falta corporeidade do exemplo pouco ou quase nada valem. Pensar certo é fazer certo.
 Que podem pensar alunos sérios de um professor que, a dois semestres, falava com quase ardor sobre a necessidade da luta pela autonomia das classes populares e, dizem que não mudou, faz discurso pragmático contra os sonhos e pratica a transferência de saber do professor para o aluno?! Que dizer da professora que, de esquerda ontem, defendia a formação da classe trabalhadora e que, pragmática hoje, se satisfaz, curvada ao fatalismo neoliberal, com o puro treinamento do operário, insistindo, porém, que é progressista?
 Não há pensar certo fora de uma prática testemunhal que o re-diz em lugar de desdizê-lo. Não é possível ao professor pensar que pensa certo mas ao mesmo tempo pergunta ao aluno se "com quem está falando". 

  
O clima de quem pensa certo é o de quem busca seriamente a segurança na
argumentação, é o de quem, discordando do seu oponente não tem por que contra ele ou
contra ela nutrir uma raiva desmedida, bem maior, as vezes, do que a razão mesma da
discordância. Uma dessas pessoas desmedidamente  raivosas proibiu certa vez estudante
que trabalhava dissertação sobre alfabetização e cidadania que me lesse. "Já era", disse
com ares de quem trata com rigor e neutralidade o objeto, que era eu. "Qualquer leitura
que você faça deste senhor pode prejudicá-la". Não é assim que se pensa certo nem é a
assim que se ensina certo. Faz parte do pensar certo o gosto da generosidade que, não
negando à quem o tem o direito à raiva, a distingue da raivosidade irrefreada.


1.7 - Ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de
discriminação

É próprio do pensar certo a disponibilidade ao risco, a aceitação do novo que não pode ser negado ou acolhido só porque é novo, assim como o critério de recusa ao velho não é apenas o cronológico. O velho que preserva sua validade ou que encarna uma tradição ou marca uma presença no tempo continua novo.

Faz parte igualmente do pensar certo a rejeição mais decidida qualquer forma de discriminação. A prática reconceituosa de raça, de gênero ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia. Quão longe dela nos achamos quando vivemos a impunidade dos que matam meninos nas ruas, dos que assassinam camponeses que lutam por seus direitos, dos que discriminam os negros, dos que inferiorizam as mulheres. Quão ausentes da democracia se acham os que queimam igrejas de negros porque, certamente, negros não tem alma. Negros não rezam. Com sua negritude os negros sujam a branquitude das orações... A mim me dá pena e não raiva, quando vejo a arrogância com que a branquitude de sociedade em que se faz isso em que se queimam igrejas de negros se apresenta ao mundo como pedagoga da democracia. Pensar e fazer errado, pelo  visto, não têm mesmo nada que ver com a humildade que o pensar certo exige. Não têm nada que ver com o bom senso que regula nossos exageros e evita as nossas caminhadas até o ridículo e a insensatez.



Às vezes, temo que algum leitor ou leitora, mesmo que ainda não totalmente convertido ao "pragmatismo" neoliberal mas por ele já tocado, diga que, sonhador, continuo a falar de uma educação de anjos e não de mulheres e homens. O que tenho dito até agora, porém, diz respeito radicalmente à natureza de mulheres e de homens. Natureza entendida como social e historicamente constituindo-se e não como um "apriori" da História.

O problema que se coloca para mim é  que, compreendendo como compreendo a natureza humana, seria uma contradição grosseira não defender o que venho defendendo. Faz parte da exigência que a mim mesmo me faço de pensar certo, pensar como venho pensando enquanto escrevo este texto. Pensar, por exemplo, que o penar certo a ser ensinado concomitantemente com o ensino dos conteúdos não é um pensar formalmente anterior ao e desgarrado do fazer certo. Neste sentido é que ensinar a pensar não é uma experiência em que ele - o pensar certo - é tomado em si mesmo e dele se faz e que se vive  enquanto dele se fala com a força do testemunho. Pensar certo implica a existência de sujeitos que pensam mediados por objeto ou objetos sobre que incide o próprio pensar dos sujeitos. Pensar certo não é que - fazer de quem se isola, de quem se "aconchega" a se mesmo na solidão, mas um ato comunicante. Não há por isso mesmo pensar sem entendimento e o entendimento, do ponto de vista do pensar certo, não é transferindo mas co-participando. Se, do ângulo da gramática, o verbo entender é transitivo no que concerne à "sintaxe" do pensar certo ele é um verbo cujo sujeito é sempre co-participe de outro. Todo entendimento, se não se acha "trabalhado"
mecanicistamente, se não vem sendo submetido aos "cuidados" alienadores de um tipo especial e cada vez mais ameaçadoramente comum de mente que venho chamando
"burocratizada", implica, necessariamente,  comunicabilidade. Não há inteligência - a não ser quando o próprio processo de inteligir é distorcido - que não seja  também comunicação do inteligido. A grande tarefa do sujeito que pensa certo não é transferir, depositar, oferecer, doar ao outro, tomado como paciente de seu pensar, a inteligibilidade das coisas, dos fatos, dos conceitos. A tarefa coerente do educador que pensa certo é, exercendo como ser humano a irrecusável prática de inteligir, desafiar o educando com quem se comunica e a quem comunica, produzir sua compreensão do que vem sendo comunicado. Não há inteligibilidade que não seja comunicação e intercomunicação e que não se funde na dialogicidade. O pensar certo por isso é dialógico e não polêmico.  



1.8 - Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática


O pensar certo sabe, por exemplo, que não  é partir dele como um dado dado, que se conforma a prática docente crítica, mas também que sem ele não se funda aquela. A prática docente crítica, implicante do pensar certo, envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer. O saber que a prática docente espontânea ou quase espontânea, "desarmada", indiscutivelmente produz é um saber ingênuo, um saber de experiência feito,  a que falta a rigorosidade metódica que caracteriza a curiosidade epistemológica  do sujeito. Este não é o saber que a rigorosidade do pensar certo procura. Por  isso, é fundamental que, na prática da formação docente, o aprendiz de educador assuma que o indispensável pensar certo não é presente dos deuses nem se acha nos guias de professores que iluminados intelectuais escrevem desde o centro do poder, mas, pelo contrário, o pensar certo que supera o ingênuo tem que ser produzido pelo próprio aprendiz em comunhão com o professor formador. É preciso, por outro lado, reinsistir em que a matriz do pensar ingênuo como a do crítico é a curiosidade mesma, característica do fenômeno vital. Neste sentido, indubitavelmente, é tão curioso o professor chamado leigo no interior de Pernambuco quanto o professor de Filosofia da Educação na Universidade A ou B. o de que se precisa é possibilitar, que, voltando-se sobre si mesma, através da reflexão sobre a prática, a curiosidade ingênua, percebendo-se como tal, se vá tornando crítica.

Por isso é que, na formação permanente dos professores, o momento fundamental é o da reflexão crítica sobre a prática. É pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática.  O próprio discurso teórico, necessário à reflexão crítica, tem de ser tal modo concreto que quase se confunde com a prática. O seu "distanciamento" epistemológico da prática enquanto objeto de sua análise e maior comunicabilidade exercer em torno da superação da ingenuidade pela rigorosidade. Por outro lado, que quanto mais me assumo como estou assim, mais me torno capaz de mudar, de promover-me, no caso, do estado de curiosidade ingênua para o de curiosidade epistemológica. Não é possível  a assunção que o sujeito faz de si numa certa forma de estar sendo sem a disponibilidade para mudar. Para mudar e de cujo processo se faz necessariamente sujeito também.
Seria porém exagero idealista, afirma que a assunção, por exemplo, de que fumar ameaça minha vida, já significa deixar de fumar. Mas deixar de fumar passa, em algum sentido, pela assunção do risco que corro ao fumar. Por outro lado, a assunção se vai fazendo cada vez mais assunção na medida em que ela engendra novas opções, por isso  mesmo em que ela provoca ruptura, decisão e novos compromissos. Quando assumo o mal ou os males que o cigarro me pode causar, movo-me no sentido de evitar os males. Decido, rompo, opto. Mas, é na prática de não fumar que a assunção do risco que corro por fumar se concretiza materialmente.

Me parece que há ainda um elemento fundamental na assunção de que falo: o emocional. Além do conhecimento que tenho do mal que o fumo me faz, tenho agora, na assunção que dele faço, legítima raiva do fumo. E tenho também a alegria de ter tido a raiva que, no fundo, ajudou que eu continuasse no mundo por mais tempo. Está errada a educação que não reconhece na justa raiva, na raiva que protesta contra as in justiças, contra a deslealdade, contra o desamor, contra a exploração e a violência um papel altamente formador. O que a raiva não pode é, perdendo os limites que a confirmam, perder-se em raivosidade que corre sempre o risco de se alongar em odiosidade.



1.9 - Ensinar exige o reconhecimento e a assunção da identidade cultural

É interessante estender mais um pouco a reflexão sobre a assunção. O verbo assumir é um verbo transitivo e que pode ter como objeto que assim se assume. Eu tanto assumo risco que corro ao fumar quanto me assumo enquanto sujeito da própria assunção.
Deixamos claro que, quando digo ser fundamental para deixar de fumar a assunção de que fumar ameaça a vida, com assunção eu quero sobretudo me referir ao conhecimento cabal que obtive do fumar e de suas consequências. Outro sentido mais radical tem assunção ou assumir quando digo: Uma das  tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as condições em que os educandos em relação uns com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e  histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar.
Assumir-se como sujeito porque capaz de reconhecer-se como objeto. A assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos outros. É a "outredade" do "não eu", ou do tu, que me faz assumir a radicalidade de meu eu.

A questão da identidade cultural, de que fazem parte a dimensão individual e a de classe dos educandos cujo respeito é absolutamente fundamental na prática educativa progressista, é problema que não pode ser desprezado. Tem que ver diretamente com a assunção de nos por nós mesmos. É isso que o puro treinamento do professor não faz, perdendo-se e perdendo-o na estreita e pragmática visão do processo.

A experiência histórica, política, cultural  e social dos homens e das mulheres jamais poder se dar "virgem" do conflito entre as forças que obstaculizam a busca da assunção de si por parte dos indivíduos e dos grupos e das forças em favor daquela assunção. A formação docente que se julgue superior a  essas "intrigas" não faz outra coisa senão trabalhar em favor dos obstáculos. A solidariedade social e política de que precisamos para construir a sociedade menos feia e menos arestosa, em que podemos ser mais nós mesmos, tem a formação democrática ema prática de real importância. A aprendizagem da assunção do sujeito é incompatível com o treinamento pragmático ou com o elitismo autoritário dos que se pensam donos da verdade e do saber articulado.

Às vezes, mal se imagina o que pode passar  a representar na vida de um aluno um simples gesto do professor. O que pode um  gesto aparentemente insignificante valer como força formadora ou como contribuição à do educando por si mesmo. Nunca me esqueço, na história já longa de minha memória, de um desses gestos de professor que tive na adolescência remota. Gesto cuja significação mais profunda talvez tenha passado despercebida por ele, o professor, e que teve importante influencia sobre mim. Estava sendo, então, um adolescente inseguro, vendo-me como um corpo anguloso e feio, percebendo-me menos capaz do que os outros, fortemente incerto de minhas possibilidades. Era muito mais mal-humorado que apaziguado com a vida. Facilmente me eriçava. Qualquer consideração feita por um colega rico da classe já me parecia o chamamento à atenção de minhas fragilidades, de minha insegurança.

O professor trouxera de casa os nossos trabalhos escolares e, chamando-nos um a um, devolvia-os com o ser ajuizamento. Em certo momento me chama e, olhando ou re-olhando o meu texto, sem dizer palavra, balança e cabeça numa demonstração de respeito e de consideração. O gesto do professor valeu mais do que a própria nota dez que atribuiu à minha redação. O gesto do professor me trazia uma confiança ainda obviamente desconfiada de que era possível trabalhar e produzir. De que era possível confiar em mim, mas que seria tão errado confiar além dos limites quanto errado estava sendo não confiar. 

Este saber, o da importância desses gestos que se multiplicam diariamente nas tramas do espaço escolar, é algo sobre que teríamos  de refletir seriamente. É uma pena que o caráter socializante da escola, o que há de informal na experiência que se vive nela, deformação ou deformação, seja negligenciado. Fala-se quase exclusivamente do ensino dos conteúdos, ensino, lamentavelmente quase sempre entendido como transferência do saber. Creio que uma das razoes que explicam este caso em trono do que ocorre no espaço-tempo da escola, que não seja a atividade ensinante, vem sendo uma compreensão estreita do que é educação e do que é aprender. No fundo, passa despercebido a nós que foi aprendendo  socialmente que mulheres e homens, historicamente, descobriram que é possível ensinar. Se tivesse claro para nós que foi aprendendo que percebemos ser possível ensinar, teríamos entendido com facilidade a importância das experiências informais nas  ruas, nas praças, no trabalho, nas salas de aula das escolas nos pátios dos recreios, em que variados gestos de alunos, de pessoal administrativo, de pessoal docente se cruzam cheios de significação. Há uma natureza testemunhal nos espaços tão lamentavelmente relegados das escolas. Em A Educação na cidade chamei a atenção para esta importância quando discuti o estado em que a administração de Luiza Erundina encontrou a  rede escolar da cidade de São Paulo em 1989. O descaso pelas condições materiais das  escolas alcançava níveis impensáveis.

Nas minhas primeiras visitas à rede quase  devastada eu me perguntava horrorizado: Como cobrar das crianças um mínimo de respeito às carteiras escolares, à mesa, às paredes se o Poder Público revela absoluta desconsideração à coisa publica? É incrível que não imaginemos a significação do "discurso" formador que faz uma escola respeitada em seu espaço. A eloquência do discurso "pronunciado" na e pela limpeza do chão, na boniteza das salas, na higiene dos sanitários, nas flores que adornam. Há uma pedagogicidade indiscutível na materialidade do espaço.

Pormenores assim da cotidianeidade do professor, portanto igualmente do aluno, a que
quase sempre pouca ou nenhuma atenção se dá,  têm na verdade um peso significativo na avaliação da experiência docente. O que importa, na formação docente, não é a repetição mecânica do gesto, este ou aquele, mas a compreensão do valor dos sentimentos, das emoções, do desejo, da insegurança a ser superada pela segurança, do medo que, ao ser "educado", vai gerando a coragem.

Nenhuma formação docente verdadeira pode fazer-se alheada, de um lado, do exercício da criatividade que implica a promoção da curiosidade ingênua à curiosidade epistemológica, e do outro, sem o reconhecimento do valor das emoções, da sensibilidade, da afetividade, da intuição ou adivinhação. Conhecer não é, de fato, adivinhar, com intuir. O importante, não resta dúvida, é não pararmos satisfeitos ao nível das intuições, mas submetê-las à  análise metodicamente rigorosa de nossa curiosidade epistemológica.  

O livro da íntegra apresenta mais dois capítulos. 

Vale muito a pena conferir!!!!

***

15 setembro, 2011

Viagem a São Saruê ( Manoel Camilo dos Santos )




“Viagem a São Saruê”, de Manoel  Camilo dos Santos

Doutor mestre pensamento
me disse um dia: -Você 
Camilo vá visitar
o país São Saruê
pois é o lugar melhor
que neste mundo se vê.

Eu que desde pequenino
sempre ouvia falar
nesse tal São Saruê
destinei-me a viajar
com ordem do pensamento
fui conhecer o lugar.

Iniciei a viagem
as quatro da madrugada
tomei o carro da brisa
passei pela alvorada
junto do quebrar da barra
eu vi a aurora abismada.

Pela aragem matutina
eu avistei bem defronte
a irmã da linda aurora
que se banhava na fonte
já o sol vinha espargindo
no além do horizonte.

Surgiu o dia risonho
na primavera imponente
as horas passavam lentas
o espaço incandescente
transformava a brisa mansa
em um mormaço dolente.

Passei do carro da brisa
para o carro do mormaço
o qual veloz penetrou 
no além do grande espaço
nos confins do horizonte
senti do dia o cansaço.
 Enquanto a tarde caía
entre mistério e segredos
a viração docilmente
afagava os arvoredos
os últimos raios de sol
bordavam os altos penedos.

Morreu a tarde e a noite 
assumiu sua chefia
deixei o mormaço e passei
pro carro da neve fria
vi os mistérios da noite
esperando pelo dia.

Ao surgir da nova aurora
senti o carro pairar
olhei e vi uma praia
sublime de encantar
o mar revolto banhando
as dumas [sic] da beira mar.

Avistei uma cidade
como nunca vi igual
toda coberta de ouro
e forrada de cristal
ali não existe pobre
é tudo rico em geral.

Uma barra de ouro puro
servindo de placa eu vi
com as letras de brilhante
chegando mais perto eu li
dizia: - São Saruê
é este lugar aqui.

Quando avistei o povo
fiquei de tudo abismado
uma gente alegre e forte
um povo civilizado
bom, tratável e benfazejo
por todos fui abraçado.

O povo em São Saruê
tudo tem felicidade
não há contrariedade
não precisa trabalhar
e tem dinheiro a [sic] vontade.


 
Lá os tijolos das casas
são de cristal e marfim
as portas barras de prata
fechaduras de “rubim”
as telhas folhas de ouro
e o piso de sitim [sic].

Lá eu vi rios de leite
barreiras de carne assada
lagoas de mel de abelha
atoleiros de coalhada
açudes de vinho do porto
montes de carne guisada.

As pedras em São Saruê
são de queijo e rapadura
as cacimbas são café
já coado e com quentura
de tudo assim per diante
existe grande fartura.

Feijão lá nasce no mato
maduro e já cozinhado
o arroz nasce nas várzeas
já prontinho e despolpado
perú nasce de escôva
sem comer vive cevado.

Galinha põe todo o dia
invés de ovos é capão
o trigo invés de sementes 
bota cachadas de pão
manteiga lá cai das nuvens
fazendo ruma no chão.

Os peixes lá são tão mansos
com o povo aostumados
saem do mar vem [sic] pras casas
são grandes, gordos e cevados
é só pegar e comer
pois todos vivem guisados.

Tudo lá e bom e fácil
não precisa se comprar
não há fome nem doença
o povo vive a gozar
tem tudo e não falta nada
sem precisar trabalhar.
 Maniva lá não se planta
nasce e invés de mandioca
bota cachos de beijú
e palmas de tapioca
milho a espiga é pamonha
e o pendão é pipoca.

As canas em São Saruê
não tem bagaço (é gozado)
umas são canos [sic] de mel
outras açucar refinado
as folhas são cinturão
de pelica e bem cromado.

Lá os pés de casimira
brim, borracha e tropical
de naycron, belga e linho
e o famoso diagonal
já bota as roupoas prontas
proprias para o pessoal.

Os pés de chapéus de massa
são tão grandes e carregados
os de sapatos da moda
têem cada cachos “aloprados”
os pés de meias de sêda
chega vive “escangalhados”.

Sítios de pés de dinheiro
que faz chamar atenção
os cachos de notas grandes
chega arrastam pelo chão
as moitas de prata e ouro
são mesmo que algodão.

Os pés de notas de mil
carregam chega encapota
pode tirar-se a [sic] vontade
quanto mais tira mais bota
além dos cachos que tem
casca e folha tudo é nota.

Lá quando nasce menino
não dar [sic] trabalho a criar
já é falando e já sabe
ler, escrever e contar
salta, corre, canta e faz
tudo quanto se mandar.

 Lá não se ver [sic] mulher feia
e toda moça é formosa
bem educada e decente
bem trajada e amistosa
é qual um jardim de fadas
repleto de cravo e rosa.

Lá tem um rio chamado
o banho da mocidade
onde um velho de cem anos
tomando banho a [sic] vontade
quando sai fora parece
ter vinte anos de idade.

É um lugar magnífico
onde eu passei muitos dias
bem satisfeito e gozando
prazer, saúde, alegrias
todo esse tempo ocupei-me 
em recitar poesias.

Lá existe tudo quanto é beleza
tudo quanto é bom, belo  bonito
parece um lugar santo e bendito
ou um jardim da divina Natureza:
imita muito bem pela grandeza
a terra da antiga promissão [sic]
para onde Moisés e Aarão
conduziam o povo de Israel,
onde dizem que corriam leite e mel
e caía manjar do céu no chão.

Tudo lá é festa e harmonia
amor, paz, benquerer, felicidade
descanso, sossego e amizade
prazer, tranquilidade e alegria;
na véspera de eu sair naquele dia
um discurso poético, lá eu fiz,
me deram a mandado de um juiz
um anel de brilhante e de “rubim”
no qual um letreiro diz assim:
- é feliz quem visita este país.

Vou terminar avisando
a qualquer um amiguinho
que quiser [sic] ir para lá
posso ensinar o caminho,
porém só ensino a quem
me comprar um folhetinho.
 
FIM